
Presente em refeições de todas as regiões do país, a mandioca sustenta a segurança alimentar brasileira e, ao mesmo tempo, exige cuidados típicos de uma matéria-prima de risco.
A raiz que dá origem à farinha servida com feijão, à tapioca do café da manhã e a amidos usados em massas, biscoitos e alimentos industrializados acumula compostos capazes de liberar cianeto, um tóxico potencialmente letal.
Em 2025, esse caráter ambíguo passa a ser formalmente enquadrado por limites oficiais para ácido cianídrico na farinha e por cadeias de processamento cada vez mais controladas, que tratam a mandioca como ingrediente crítico do ponto de vista de segurança.
A toxicidade natural da planta decorre dos glicosídeos cianogênicos, em especial a linamarina, presentes na polpa, na casca e em outras partes da mandioca.
Quando a raiz é ralada, cortada ou machucada, enzimas da própria planta degradam esses compostos e liberam ácido cianídrico, capaz de provocar desde mal-estar e tontura até quadros graves de intoxicação, dependendo da dose ingerida.
Para reduzir o risco, materiais técnicos classificam as variedades em mansas e bravas conforme o teor de cianeto por quilo de raiz fresca: cultivares de mesa, também chamadas de mandioca mansa, macaxeira ou aipim, costumam apresentar menos de 50 a 100 miligramas de HCN por quilo, enquanto raízes bravas, amargas ou venenosas ultrapassam essa faixa e precisam obrigatoriamente de processamento antes do consumo.
Riscos de intoxicação e registros internacionais
A associação entre mandioca mal processada e problemas de saúde está consolidada em relatos de diferentes países.
Estudos descrevem surtos de intoxicação aguda por consumo de pratos preparados com farinha de mandioca com altos teores de compostos cianogênicos, em que o processamento insuficiente e o uso de variedades muito amargas resultaram em envenenamento coletivo.
Nessas situações, os sintomas mais frequentes incluem náusea intensa, vômitos, dor abdominal, tontura e dificuldade respiratória, com registro de óbitos quando a carga de cianeto supera a capacidade de detoxificação do organismo.
Em cenários de pobreza prolongada e dieta quase exclusiva baseada em mandioca amarga, a preocupação se desloca para a exposição crônica.
Em países africanos, pesquisas relacionam o consumo repetido de raízes e farinhas mal desintoxicadas, associado a dietas pobres em proteína, a doenças neurológicas como konzo e neuropatia atáxica tropical, caracterizadas por paralisia espástica irreversível.
Nesses casos, não se trata de um único episódio de intoxicação, mas da soma diária de pequenas doses de cianeto em populações com baixa ingestão de aminoácidos essenciais.
Limites oficiais e alinhamento internacional
Foi à luz desse histórico que organismos internacionais estabeleceram limites numéricos para o cianeto em produtos de mandioca.
Avaliações conjuntas da FAO e da OMS concluíram que farinha de mandioca contendo até 10 miligramas de ácido cianídrico por quilo não está associada à toxicidade aguda em condições normais de consumo.
Esse valor integra o padrão do Codex Alimentarius e orienta normas específicas em diferentes regiões do mundo.
No Brasil, documentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária recomendavam, desde 2024, o alinhamento ao Codex.
Em 2025, essa diretriz se materializa na Instrução Normativa nº 351, que atualiza a IN nº 160 e estabelece o limite máximo tolerado de 10 mg/kg de ácido cianídrico para farinha de mandioca.
O texto normativo também atualiza parâmetros de metais, micotoxinas e outros contaminantes para harmonizar padrões nacionais e internacionais.
Caminho da raiz ao produto final
Na prática, a raiz deixa de ser vista apenas como cultura tradicional e passa a figurar em um quadro regulatório que exige comprovação de controle do seu principal risco natural.
Em casas de farinha artesanais, agroindústrias regionais e plantas industriais, o trajeto da mandioca até a farinha seca, farinha d’água ou tapioca é organizado em etapas sucessivas voltadas à eliminação dos glicosídeos cianogênicos.
O processo inclui descascamento e lavagem das raízes, ralação ou moagem, prensagem da massa para extração da manipueira, esfarelamento, secagem ou torrefação, peneiragem, classificação e embalagem.
Cada fase contribui para a detoxificação.
A prensagem prolongada favorece a saída de compostos solúveis com a manipueira, líquido que possui teores significativos de cianeto e exige descarte adequado.
A etapa de secagem e torra, realizada em fornos aquecidos, acelera a volatilização do ácido cianídrico remanescente na massa.
Publicações de Embrapa e de serviços de assistência técnica reforçam que o modo como cada etapa é conduzida determina a segurança final do produto.
Produção de amidos e polvilhos industriais
Os mesmos princípios se aplicam à produção de polvilho e fécula.
A fabricação envolve massa ralada, sucessivas lavagens, peneiragens, decantação do amido, retirada da fração mais pura e secagem controlada.
Estudos setoriais indicam que o processo, quando realizado com boas práticas, reduz a presença de impurezas e resíduos de compostos cianogênicos, garantindo padrões físico-químicos exigidos pela indústria.
Variação dos teores de cianeto em diferentes regiões
Mesmo com o avanço dos processos e da legislação, medições recentes mostram que os derivados de mandioca ainda apresentam grande variação no teor de cianeto.
Farinhas, raízes secas, massas fermentadas e outros produtos podem registrar valores abaixo do limite de 10 mg/kg, mas ainda ocorrem amostras com concentrações superiores.
A variação é mais frequente quando se utilizam variedades altamente amargas, o processamento é reduzido ou as condições de armazenamento são inadequadas.
Produção nacional e papel econômico
No Brasil, levantamentos mostram que muitas variedades apresentam teores compatíveis com a detoxificação tradicional.
Estudos em regiões amazônicas registram valores médios de cianeto em polpa fresca geralmente abaixo das concentrações extremas encontradas em cultivares muito amargas, com queda significativa após fermentação, prensagem e torrefação.
Ainda assim, há materiais genéticos com níveis elevados, exigindo processamento completo e desestimulando o consumo in natura.
Do ponto de vista econômico, a mandioca consolidou-se como uma das principais fontes de carboidratos dos trópicos e como matéria-prima estratégica para a indústria de amidos.
A raiz abastece a produção de farinha, polvilho, goma e outros derivados amplamente vendidos no país e usados em pães, biscoitos, molhos, produtos sem glúten e alimentos processados.