A mensagem acima faz parte de um vídeo gravado por Latifa, princesa de Dubai, poucos dias antes de tentar fugir da cidade, que faz parte dos Emirados Árabes Unidos (EAU), no Oriente Médio. Ela é uma dos 30 filhos do líder de Dubai e primeiro-ministro dos EAU, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, uma das figuras políticas mais ricas e poderosas do mundo.
“Muito em breve, eu vou fugir para algum lugar. E eu não tenho certeza se isso dará certo, mas estou 99% otimista de que vai funcionar”, disse Latifa no vídeo, gravado em segredo com o objetivo de somente ser divulgado por seus amigos caso o plano de fuga não desse certo. O depoimento era como um pedido de ajuda para o futuro.
Em fevereiro deste ano, a gravação foi postada no YouTube, sinalizando que algo pode ter ocorrido com a princesa.
A história de Latifa foi contada por um novo documentário da BBC, Escape from Dubai: The Mystery of the Missing Princess (A fuga de Dubai: o mistério da princesa desaparecida), transmitido em 6 de dezembro. Neste texto, a BBC News Brasil reconta a trajetória da princesa.
“(Dubai) não é como tem sido retratada pela mídia. Aqui não há justiça. Eles não se importam. Especialmente se você é mulher, sua vida é tão descartável”, narrou Latifa no vídeo.
A vida da princesa Latifa em uma ‘jaula de ouro’
Como filha do xeique Maktoum, Latifa vivia rodeada de muito luxo. “Ela vivia com sua mãe e duas irmãs em uma casa particular, que, vista de fora, parecia um palácio. Tinha piscinas, salas de massagem, provavelmente 100 funcionários”, conta Tiina Jauhiainen, que foi treinadora de capoeira de Latifa e se tornou sua amiga de confiança.
“Para mim, parecia que Latifa tinha tudo que uma garota poderia sonhar em ter”, contou Tiina à BBC. “Vivia em um palácio, tinha muito dinheiro, não faltava nada. Essa era a primeira impressão. Levou um tempo até que eu percebesse a realidade da sua vida.”
Os Emirados Árabes Unidos se apresentam como uma das sociedades mais liberais para as mulheres no Oriente Médio, na qual podem desfrutar de liberdades e luxos do Ocidente. Mas, assim como a Arábia Saudita, o país também é regido pela sharia, a lei islâmica.
“As mulheres têm que ser obedientes aos seus maridos. Os homens podem bater nas suas mulheres e filhos. Isso está na lei dos EAU. Então, se uma mulher é considerada muito selvagem, não controlada pela família, eles podem decidir confiná-la e puni-la, para que ela não se comporte dessa maneira”, afirmou Rhothna Begum, da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
Em 2002, quando tinha 16 anos, Latifa tentou fugir pela primeira vez. Mas foi capturada na fronteira e levada de volta para Dubai. No vídeo, a princesa diz que foi duramente punida pela fuga.
“Eles me colocaram na prisão e me torturaram. Basicamente, um cara me segurava, enquanto outro me batia. Depois das sessões de tortura eu não podia nem andar.”
A seguir, narra Latifa, ela foi confinada sozinha em um quarto-escuro, sem saber o que era dia e o que era noite. No total, teria ficado nesse confinamento por 3 anos e 4 meses, e liberada somente aos 19 anos.
Latifa saiu dessa experiência completamente diferente, segundo conta no vídeo. Deixou de confiar nas pessoas e começou a passar mais tempo com animais – alguns desses momentos estão registrados em seu perfil no Instagram.
Livre, mas impedida de deixar Dubai, a princesa foi autorizada a contratar tutores privados. Aos 26 anos, concluiu seus estudos. Também passou a fazer treinamentos esportivos. Além das aulas de capoeira com Tiina, fez cursos de paraquedismo e se juntou à comunidade de paraquedistas locais.
“Ela me dizia que o paraquedismo dava a ela uma sensação de liberdade, ela precisava de algo para se distrair da sua vida”, diz Tiina.
Pessoas que conviveram com Latifa disseram para a BBC que a princesa era calada, simples, e nunca falava sobre sua família.
Apesar disso, fotos de Latifa pulando de paraquedas acabaram sendo veiculadas na mídia local, passando a imagem que Dubai queria transmitir: a da diversão e da liberdade feminina.
É tudo uma “farsa”, disse Latifa no vídeo. “Não posso dirigir, não posso viajar, não saio (de Dubai) desde 2000, não deixam. Pedi para estudar (fora), e me negaram”, declarou. “Meu pai tem essa imagem de ser (um homem) moderno. É mentira. É só marketing.”
Xeique Maktoum cultiva imagem de homem moderno
O xeique Rashid al Maktoum cuida da sua imagem com esmero. Patrick Nixon, embaixador britânico na região, descreveu o xeique como “carismático, dinâmico, com certo encanto, mas muito determinado”. “É um personagem muito público, que aparece na imprensa todo o tempo. Sabe o que quer, como obter e quem pode ajudar”, destacou Nixon para a BBC.
Sob seu comando, Dubai se transformou radicalmente: de uma cidade seca no deserto a uma das metrópoles mais glamorosas do mundo, repleta de imponentes arranha-céus e luxuosas ilhas artificiais. É uma “Las Vegas do Oriente Médio”, “hedonista”, “com um pouco de tudo”, comentou Rhothna Begum, da Human Rights Watch.
Em sua vida particular, Maktoum é um dos mais importantes criadores de cavalos do mundo. Por conta dessa paixão, o xeique viaja frequentemente à Inglaterra, para assistir às famosas corridas de Ascot, onde tem uma mansão avaliada em US$ 95 milhões – o xeique é, aliás, o maior proprietário privado de terras no Reino Unido. Em algumas dessas visitas, Maktoum chega a confraternizar com a realeza britânica.
“O xeique é uma marca internacional”, assinalou o jornalista inglês Sean O’Driscoll. “Mas, em Dubai, o controle é completo. Não se pode escrever nada de negativo sobre Dubai.”
A fuga da princesa Shamsa, irmã de Latifa
Um exemplo da força repressiva do regime de Dubai é o que ocorreu a uma das irmãs de Latifa, a princesa Shamsa, em 2000.
Naquele ano, Maktoum decidiu passar o verão na sua mansão na Inglaterra com parte da família – Shamsa, inclusive, que tinha 18 anos.
A comitiva era acompanhada por diversos seguranças e todos os deslocamentos eram feitos em aeronaves particulares. “Shamsa odiava tudo isso. Ela se queixava da sua jaula de ouro”, comentou Stuart Millar, jornalista do jornal britânico The Guardian.
Cansada de viver aprisionada no luxo da família, sem ter “as liberdades do mundo civilizado”, segundo Latifa, Shamsa fugiu.
Ela conseguiu ficar escondida por várias semanas, mas acabou localizada pelos seguranças de seu pai há alguns quilômetros de Cambridge. “Ela foi agarrada e colocada dentro de um carro, gritando. Depois, (foi levada) a um helicóptero até a França. E da França até Dubai”, relatou Millar, que fez a cobertura do caso.
A operação tinha a marca de um sequestro, um delito grave no Reino Unido. A polícia de Cambridge chegou a iniciar uma investigação, mas não conseguiu seguir adiante. O investigador responsável pelo caso tentou ir para Dubai para falar com Shamsa, mas teve negado seu pedido de ingresso nos EAU – nunca lhe disseram o porquê.
Os EAU são um aliado estratégico do Reino Unido, o que dificultou a continuidade do caso. “Você tem esse aliado chave e fundamental no Golfo. Além disso, ele (Maktoum) é da realeza, amigo da nossa realeza. É a tempestade perfeita”, concluiu Millar.
“Foi uma das histórias mais estranhas em que já trabalhei. Em que uma acusação de sequestro no Reino Unido não foi investigada”, disse Millar.
Shamsa foi dopada e feita prisioneira em Dubai, acusa Latifa
Não se sabe o que ocorreu a Shamsa depois que ela voltou para Dubai. No vídeo, Latifa contou que a irmã foi dopada e aprisionada em um quarto de um palácio.
“Ela foi colocada nessa construção, Zabell Palace, e ficou presa por oito anos. E então me permitiram que eu a visitasse. Ela estava em um estado muito, muito, muito, ruim. Ela não abria os olhos. E as pessoas precisavam dar a mão (a Shamsa) para que ela caminhasse. Davam-lhe comida e um monte de comprimidos. Esses comprimidos faziam com que ela ficasse como um zumbi”, narrou Latifa.
“Estava constantemente rodeada por enfermeiras, que dormiam com ela e anotavam tudo o que fazia ou dizia”, continuou.
Foi após a fuga da irmã que Latifa decidiu escapar. Mas foi pega e, segundo seus relatos, presa e torturada. É impossível verificar se isso realmente ocorreu. Mas, Sima Watling, da Anistia Internacional, afirma que alguns aspectos da descrição do que ocorreu com ela soam “familiar e plausível”.
Organizações de direitos humanos já conseguiram documentar diversos casos de tortura por espancamento em prisões do EAU e confinamento solitário.
Latifa planejou outra fuga para fevereiro de 2018
Depois de dez anos da primeira tentativa de fuga, Latifa planejou escapar outra vez. No vídeo, a princesa conta que ia até um café com internet, onde entrava em contato com Hervé Jaubert, um ex-espião francês. Eles teriam trocado mais de 200 e-mails.
Jaubert era um ex-agente de inteligência naval, que havia trabalhado em Dubai, mas teve problemas com os Emirados e teve que escapar pelo mar, nadando por uma grande parte do trajeto. “Já que eu havia escapado de Dubai, ela (Latifa) queria fazer o mesmo”, contou Jaubert para a BBC.
“Fiquei comovido, era uma solicitação pessoal e eu queria dar uma chance a ela.”
A instrutora física de Latifa, Tiina, baseada na Finlândia, passou a ser a intermediária. Viajou quatro vezes para as Filipinas, onde estava Jaubert. Lá, elaboraram o plano que Tiina precisava transmitir a Latifa, em Dubai.
Primeiro, eles viajariam por terra até Mascate, capital de Oman. Ao chegar à costa, pegariam um bote inflável até atingir um iate, onde Jaubert estaria esperando. Como os Emirados Árabes Unidos controlam as águas do mar Arábico, a estratégia de Jaubert era navegar até a Índia – como havia feito quando ele próprio fugiu. A etapa final seria voar até a Flórida, nos Estados Unidos, onde Latifa pediria asilo político.
O dia escolhido foi 24 de fevereiro de 2018. Tiina contou para a BBC que Latifa estava muito nervosa. “Nos encontramos em um café, como já havíamos feito no passado. Latifa retirou o abaya (o manto inslâmico) e mudou seu visual um pouco.”
Elas então entraram no carro – era a primeira vez que Latifa se sentava no banco da frente. “Ela queria fazer selfies o tempo todo”, recordou Tiina.
Ao chegarem na costa de Oman, em um fim de tarde, pegaram o bote e percorreram quase 40 quilômetros até alcançar o iate de Jaubert. Nele, navegariam 2,5 mil quilômetros até a Índia.
“Não sei como vou me sentir por poder fazer o que eu quiser. Será incrível”, declarou Latifa, entusiasmada, no vídeo que gravou antes de sua partida.
Mas Latifa ainda não estava fora de perigo. Todos sabiam que estavam enfrentando um dos Estados policialescos mais sofisticados do mundo e que seria difícil se esquivar dele. “A situação era tensa. Basicamente, (você) está em guerra, em uma área hostil. Se te encontram, está morto”, ressaltou Jaubert para a BBC.
Perseguição nos mares indianos
Especialistas internacionais assinalam que os Emirados Árabes Unidos investiram milhões de dólares em sistemas de vigilância israelenses, capazes de converter um celular em um aparato de espionagem. Podem rastrear as pessoas online, interferindo em seus telefones, e localizá-las. Para isso, não é preciso nem que os telefones estejam ligados.
Latifa tinha um mau presságio de ir para a Índia, um país com quem os EAU têm pactos estratégicos. Ela sabia que seu pai iria atrás dela – e a Índia não titubearia em ajudá-lo, pensava Latifa.
Para tentar se prevenir de uma perseguição, a princesa de Dubai entrou em contato com diversos jornalistas. “Mas ninguém acreditava nela, era muito triste”, lembrou Tiina.
Radha Sterling, fundadora da ONG britânica detidos em Dubai, também foi procurada por Latifa. As duas trocaram dezenas de mensagens, mas quando Sterling solicitou uma foto de Latifa, para comprovar sua identidade, a princesa se recusou a enviá-la, com medo de que fosse interceptada.
De toda forma, o aparato de segurança de Maktoum já estava seguindo as pistas de Latifa. “Fomos seguidos por barcos. Então, apareceu um avião de vigilância indiano. Fiquei preocupado, porque sabia que tinham nos identificado.”
A apenas 50 quilômetros da Índia, o iate foi interceptado e abordado por pessoas armadas. “Colocaram uma arma no meu rosto. ‘Fecha os olhos ou te mato’, gritaram para mim. Alguém me algemou e, em seguida, me deu um golpe violento. Acabei em uma poça de sangue. Eram indianos”, disse Jaubert.
Tiina e Latifa se esconderam em um banheiro. De lá, a princesa começou a enviar mensagens para Radha Sterling, informando que seu barco estava sob ataque. “Me ajude”, pediu pelo telefone. Do outro lado, Sterling escutou sons que lhe pareceram ser de disparos.
Tiina e Latifa foram encontradas e, sob a mira de uma arma, levadas para o convés. “Escutei árabe e me dei conta que alguém dos Emirados havia nos abordado”, recordou a treinadora Tiina.
Latifa então gritou e pediu asilo. Disse que preferia morrer ali mesmo. “Foi a última vez que a escutei falar. Estava paralisada”, contou Tiina. “Eu estava preparada para enfrentar piratas, mas nunca um conluio entre Índia e Emirados Árabes”, falou Jaubert.
Sete dias depois, foi postado no YouTube o vídeo que Latifa havia gravado antes da tentativa de fuga e enviado para amigos divulgarem se algo ocorresse a ela.
Não se sabe o que ocorreu com Latifa
Tiina, sua amiga finlandesa, e o ex-espião francês Jaubert foram levados a Dubai. Ela foi acusada de manipular a princesa e ele, de sequestrá-la. Os dois dizem que as autoridades de Dubai tentaram forçá-los a desmentirem as denúncias da princesa rebelde, mas eles não o fizeram.
Duas semanas depois, acabaram liberados. Já de Latifa não há nenhuma notícia.
“Me sinto muito mal, porque eu deveria tê-la levado a um lugar seguro. Talvez ela nem esteja com vida”, lamentou Jaubert.
Mohammed bin Rashid Al Maktoum e o governo de Dubai não comentaram as acusações feitas no documentário da BBC. Porém, emitiram um comunicado dizendo que “Latifa e Shamsa são adoradas e valorizadas por sua família e Latifa está agora segura em Dubai”.
Tiina tem a esperança de que sua amiga “siga viva, que tenha força e não se dê por vencida”. E recorda as últimas palavras de Latifa no final do seu vídeo revelador. “Se eu não sair desta, espero que ao menos surja algo bom.” Por BBC / Reprodução/via BBC