Tropeiros do Parmesão da Serra Mantiqueira II

Por: NossaCara.com
10/10/2010 - 23:05:16

Tropeiros do parmesão – Parte II
Matéria publicada pelo Globo Rural dia 19/09/2010

São poucas e péssimas as estradas no trecho da Mantiqueira, que fica na divisa de Minas, Rio e São Paulo. O transporte da carga de carro sairia muito mais caro. Por isso, toda sexta-feira Jesuel sai com a tropa e tem um encontro com os amigos no alto da serra.

Jesuel é o mais velho, está com 60 anos de idade e há 36 faz a rota. O Jair Fonseca, de 57 de idade, há vinte é tropeiro. Paulo Fonseca é o caçula, tem 41 anos, e começou há seis atrás.

No vídeo é possível ver um mapa que mostra a diferença das trilhas. Jesuel sai da comunidade de Serra Negra e pega um dos caminhos; Jair e Paulo saem do distrito da Fragária. De onde se encontram, falta cerca de 30 quilômetros até Visconde de Mauá, distrito turístico do município de Resende, já no estado do Rio de Janeiro.

Os companheiros, agora juntos, pegam uma parte menos inclinada: a parte íngreme, mais escarpada, fica pra trás. Mas a subida até a dobra do espigão não terminou.

Os campos de altitude, forrados de capim nativo, se sobressaem. Aqui e ali, entremeando a paisagem, ainda restam matinhas frias pra atravessar. Elas ficam próximas ou sobre brejos de altitude, são áreas úmidas e encharcadas no topo da montanha. O pisoteio secular cavou a trilha, abriu valas de até dois metros de profundidade. O tropeiro tem que romper este desafio.

Imagine socar num pilão a folhagem que cai, mais galho seco, e a terra úmida: vira um sopão, uma escadaria de poças de barro. O destino da gente é o topo, mas o terreno da matinha é ondulado, cheio de sobe-e-desce.

Se pra subir tem que ter muita atenção, pra descer o cuidado é redobrado. Há muito perigo de escorregar. A imagem contradiz a crença de muita gente que acha que burro e mula não rompem terreno barrento. E resposta pra quem pergunta: ‘mas não é o caso de apear?’. Não. Você desceria um tobogã, puxando burro cargueiro? E se ele escorrega e vem pra cima com o já cá e tudo? Nada, porém, que possa assustar ou intimidar quem já leva a vida na rotina das adversidades.

Enquanto nossa viagem segue sem ocorrências... Voltemos outro pouquinho no tempo: faz muito frio onde mora o Jair, nas madrugadas de inverno. Antes de clarear o dia já tem gente em pé na casa, se preparando pra enfrentar a geada que está sapecando todo o vale. Quando amanhece, se vê melhor. Parece que pulverizaram sal grosso na paisagem.

Três graus abaixo de zero e lá vem ele. Bota craquelando os cristais de gelo na pontinha do capim. Como os outros companheiros, mesmo em dia de tropear ele tem que cumprir a obrigação do leite. No inverno, com a ruindade dos pastos, a produção é pequena, quase que só para o consumo da família.

Do outro lado do rio, num curral vizinho um quilômetro do Jair, quem faz a ordenha é o Paulinho Fonseca. Volume pequeno também. Conta que já até tirou financiamento pra comprar vaca melhor, mas tornando a voltar pra outra margem de novo, quem a gente vê agora é a dona Nadir, esposa do Jair Fonseca.

Enquanto ele termina o serviço com o gado e faz os balaios e cestos que também leva pra vender...; é dona Nadir quem visita os fornecedores recolhendo as mercadorias pro marido.

Já o Paulinho, ele coleta pessoalmente a carga. Só não pega ovo de ninguém, pois tem sua própria criação. E quem o ajuda a embalar é a mãe dona Geraldinha que faz isso desde que se casou com o pai do Paulinho, que também era tropeiro. Cada ovo é vestido com uma tira de palha de milho.

Embrulhados assim, os ovos têm proteção suficiente pra aguentar os trancos que lá vão tomando na cangalha. O comboio já quase alcançando a virada. Passo marcado pelos campos que levam à cumeeira da serra.

E mais um tropeiro se junta à comitiva. É o Natanael Cristiano Ramos, vinte anos de tropa, que mora numa dobrada de onde atalha um caminho por dentro.

Ele leva truta no cargueiro. Tal como os outros, Natanael também vive do leite. Mas, aproveitando a fartura de nascentes, abriu tanques de criação.

Quando é véspera de viagem, Natanael abate, resfria e é dentro de caixas de isopor que as trutas são levadas no lombo das mulas serra afora.

No ponto mais alto, a dois mil e duzentos metros de altitude, é possível ver os dois estados, Minas, Rio e São Paulo. Justamente neste ponto, a comitiva transpõe a cumeeira e pega a outra vertente da serra. É o início da descida que traz uma novidade: três cavaleiros despontam lá longe. Depois de quase quatro horas de viagem vamos finalmente cruzar com alguém.

Na verdade é um homem e duas mulheres. Ele, pelo jeito, já conhecido dos tropeiros. Gil de Assis é engenheiro aposentado e dono de pousada no litoral de Búzios, Rio de Janeiro. Diz que gosta tanto da Mantiqueira que tem duas propriedades na região e sempre traz alguém pra compartilhar os passeios pelo “mar de morros”. Desta vez, é uma carioca, a Gisele Leal; e uma argentina, a Lucia Lage.

A pergunta era sobre a paisagem, mas para as moças o encanto é ver a natureza viva desse quadro que os cargueiros compõem. Gil acha uma relíquia haver ainda haver tropa tão perto de São Paulo e Rio de Janeiro. Como as delícias artesanais que transportam, o próprio trabalho dos tropeiros já é em si uma atração turística.

Envaidecidos, os tropeiros agradecem a bondade dos elogios lembrando que num lugar desses a tendência é se achar tudo bonito. “É muito bom, muito gostoso, a gente passeia, se diverte. Estamos trabalhando, mas se divertindo também”. Só o Jair destoa do encanto, com ar de desaprovação. “Se eu tivesse outro jeito eu parava. Eu faço porque tem necessidade”, diz.

No próximo programa você vai ver o que deixa o Jair assim e porque a mulher dele, dona Nadir, fica rezando em casa. Na descida, mais escadaria. O casco trisca na laje. O desafio do “passa um”, com abismo dos dois lados. A alegria de quem espera os tropeiros num lugar onde os turistas surfam na cachoeira.

E os surfistas que, trinta anos atrás, deixaram a praia de Ipanema pra viver nas montanhas da Mantiqueira. Criaram os filhos, reinventaram práticas de produção, e se enturmaram de tal forma com a cultura da serra que acabaram fazendo tropeada, também. Só que de carro.

Não perca então, domingo que vem, o final da travessia, quando daremos também, é claro, a receita do queijo tipo parmesão da Mantiqueira.

 

 

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